Dilemas do Plano Diretor

Este texto procura caracterizar o que seja um plano diretor e expor alguns dilemas enfrentados atualmente, numa tentativa de salvá-lo da crise de descrédito em que se encontra.

PLANO DIRETOR E ZONEAMENTO

O planejamento urbano desenvolvido nas últimas décadas no Brasil vem se manifestando através de várias modalidades, que apresentam diferentes características. Uma dessas modalidades é a que tem se manifestado através dos planos diretores ou das ideias sobre planos diretores. Uma outra, que com esta tem grande afinidade, é o chamado “planejamento físico-territorial”. Outras modalidades importantes são o planejamento de cidades novas, o controle do uso e ocupação do solo (através dos códigos de zoneamento e de loteamentos) e o planejamento setorial (de transportes, saneamento etc.).

Uma das notáveis características desse planejamento urbano stricto sensu é que ele, ao contrário do zoneamento e do controle dos loteamentos, tem existido quase que somente na teoria, no discurso, sem empirismo. As leis de zoneamento e loteamentos têm tido uma existência real, têm sido objeto do teste da prática, e tem havido, ao longo das décadas e em várias cidades, um certo empenho em aplicá-las – dentro dos óbvios limites daquilo que, no Brasil, pode ser chamado de empenho em aplicar a lei. Com o plano diretor, isso não vem ocorrendo.

TENTANDO DEFINIR PLANO DIRETOR

A inexistência do plano diretor, na prática, tem facilitado muito a enorme confusão que hoje reina em torno de seu conceito.

Seria um plano que, a partir de um diagnóstico científico da realidade física, social, econômica, política e administrativa da cidade, do município e de sua região, apresentaria um conjunto de proposta  para o futuro desenvolvimento socioeconômico e futura organização espacial dos usos do solo urbano, das redes de infra-estrutura e de elementos fundamentais da estrutura urbana, para a cidade e para o município, propostas estas definidas para curto, médio e longo prazos, e aprovadas por lei municipal

Essa seria uma definição que acreditamos ser a mais consensual. Uma outra versão reduziria o plano diretor aos aspectos físico-territoriais do município.

Nos últimos anos, desenvolveu- se no Brasil uma corrente de pensamento ligada especialmente aos meios imobiliários – que defende a tese de que as propostas de um plano diretor devem se limitar a políticas, objetivos e diretrizes gerais, ou seja, o plano diretor não deve ter – enquanto lei – dispositivos auto-aplicáveis.

o zoneamento não é considerado plano diretor, embora muitos pensem em zoneamento quando falam em plano diretor. Na Administração Municipal brasileira, zoneamento e plano diretor desenvolveram-se de forma paralela e independente (para o caso de São Paulo, ver Feldman, 1996).

O conceito teórico de plano diretor inclui o zoneamento como um instrumento indispensável à sua execução, mas raríssimos são os planos diretores que incluíram um zoneamento minimamente desenvolvido a ponto de ser auto-aplicável, aprovável e aprovado por lei.

O conceito de plano diretor ( físico-territorial ou não) desenvolveu-se no Brasil mais ou menos a partir dos anos 50.

Não há no Brasil, entre os grupos sociais envolvidos em planos diretores arquitetos, urbanistas, ONGs ligadas ao espaço urbano e habitação, geógrafos, juristas, empresários imobiliários, proprietários fundiários etc.–, o menor consenso quanto ao que seja um plano diretor. Se considerarmos como válida a definição acima, pode-se afirmar que nunca houve plano diretor no Brasil fora do discurso.

Apesar dessas deficiências, tem havido algum planejamento físico-territorial. Com efeito, o zoneamento é a modalidade de planejamento urbano mais antiga e mais difundida no Brasil e, sem dúvida, o zoneamento é um instrumento de atuação sobre a organização territorial urbana. Não se entra no seu mérito, pois é sabido que ele não tem atuado sobre a organização territorial de nossas cidades como um todo, mas apenas em pequenas parcelas delas, ou seja, aquelas constituídas pelos bairros das classes médias para cima. Para a maioria de nossas populações urbanas, os benefícios trazidos pelo zoneamento – se há algum – têm sido desprezíveis.

DILEMAS

Órgãos municipais, estaduais, regionais e federais ligados ao desenvolvimento urbano, redigem pilhas de relatórios e realizam custosas pesquisas visando nutrir essa quimera. Nas universidades, aulas são dadas, teses defendidas, seminários organizados e conferências pronunciadas louvando as virtudes de um plano diretor que nunca existiu. Uma criação da razão pura, uma construção mental baseada na idéia pura descolada da realidade social.

Por mais paradoxal que pareça, nenhum grupo social importante no Brasil tem realmente se interessado por planos diretores ( embora se envolvam com eles) nos termos do conceito acima apresentado, nem de qualquer conceito parecido

Com efeito, plano diretor, com a abrangência que vem sendo apregoada por muitos acadêmicos, assusta a maioria de nossos prefeitos, que nele vêem um indesejável constrangimento à sua atuação.

Por outro lado, tem sido irrisório (se é que tenha havido algum) o número de prefeitos que democraticamente tenham pautado suas campanhas eleitorais por uma plataforma de governo que atenda aos interesses populares, que tenha sido democraticamente debatida com a população e que tenham desejado e conseguido incorporá-las num plano diretor.

A elite econômica brasileira – no caso representada pelos interesses imobiliários – não quer saber de plano diretor, pois ele representa uma oportunidade para debater os ditos “problemas urbanos” que ela prefere ignorar. A experiência recente em diversas capitais (Rio de Janeiro, Belém, São Paulo), revela claramente que as forças e interesses do setor imobiliário não querem saber de plano diretor. Nesse sentido, essas forças e interesses vêem propugnando por um plano diretor apenas de princípios gerais. Com isso, conseguem um plano diretor inócuo.

Durante os anos 90, desenvolveu-se em alguns órgãos municipais de planejamento a idéia de renovar as leis de zoneamento, delas tentando eliminar seu tradicional elitismo.
Propunham um zoneamento que correlacionasse a ocupação do solo urbano com a capacidade da infra-estrutura,

PLANO DIRETOR E COEFICIENTE DE APROVEITAMENTO

Com o advento das chamadas Operações Interligadas, que se iniciaram em São Paulo em 1988 e rapidamente passaram a ser conhecidas em todo o País, passou a vigorar no Município de São Paulo uma legislação que permitia a outorga onerosa do direito de construir, ou seja, em linguagem comum, passou a ser permitido, em situações especiais, previstas em lei e mediante procedimentos administrativos também especiais, ultrapassar os coeficientes de aproveitamento da lei de zoneamento respeitado o máximo de quatro vezes que constava do plano diretor em vigor, desde que o interessado pagasse à prefeitura uma certa quantia, sob a forma de habitações populares para favelados.

Esse máximo de quatro tinha que ser respeitado, pois constava de um plano diretor, e este não podia ser alterado por uma lei comum, como era, por exemplo, a lei que aprovou as Operações Interligadas. Desde então, os interesses imobiliários em São Paulo vêm lutando para generalizar a prática de poder ultrapassar o coeficiente de aproveitamento mediante pagamento.

Essa é a única razão pela qual foi discutido, em 1998, um plano diretor para São Paulo. Fora essa única alteração de um dispositivo auto-aplicável, os interesses imobiliários não querem nada além de princípios, diretrizes ou políticas gerais. Nada que seja auto-aplicável.

Nelas, os únicos dispositivos auto-aplicáveis que os interesses imobiliários toleram são os referentes ao coeficiente de aproveitamento. Fora este, apenas princípios gerais. É o plano diretor inócuo e inútil.

Os problemas da maioria da população, aquela enorme parcela que é forçada a viver à margem da lei urbanística (e de muitas outras leis) são ignorados pelos planos diretores e seus princípios gerais. As tentativas em sentido contrário enfrentam a resistência dos setores imobiliários.

Outra posição que muito tem contribuído para a inoperância e descrédito dos planos diretores é aquela que defende a tese de que tudo aquilo que for importante para o município deve constar do plano diretor, seja da alçada do governo federal, estadual ou municipal. Com isso, o plano diretor passa a correr o risco de se transformar numa (ou incluir uma) listagem de propostas que não obrigam nenhum órgão a cumpri-las, nem criam qualquer responsabilidade, já que o plano municipal não tem qualquer efeito sobre as ações dos governos federal ou estaduais.

Alguns alegam que a inclusão, nos planos diretores, de propostas cujo cumprimento caberia aos governos estaduais ou federal, seria uma forma de pressão ou uma reivindicação a esses níveis de governo. Isso não passa de uma ilusão e de uma idealização dos planos diretores que apenas serve para desmoralizá-los

Campanhas e pressões políticas serviriam melhor a esses propósitos do que rechear os planos diretores de propostas de questões de competência de outros níveis de governo.

Ligada a essa questão da atribuição municipal, está uma questão freqüentemente mencionada da seguinte forma: “O plano diretor não pode limitar-se às zonas urbanas do município. Há uma total interdependência entre a cidade e a zona rural, de maneira que esta não pode deixar de constar dos planos diretores”. Essa é uma falsa maneira de colocar a questão. O que deve ou não deve constar do plano diretor não se define em termos de zona rural ou urbana. O plano diretor deve abordar todos os problemas que sejam da competência do município, estejam eles na zona rural ou urbana.

O que interessa saber é se a solução de uma determinada questão ou problema é ou não é da alçada do município, e não se ela é social ou econômica

Plano diretor nunca foi espaço adequado para se inserir reivindicações de obras da alçada de outros níveis de governo.

UM FUTURO POSSÍVEL

Cumprindo a determinação constitucional, várias cidades brasileiras voltaram a elaborar planos diretores no início dos anos 90.

Algumas, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre aproveitaram a oportunidade não só para rejeitar o plano tradicional (o superplano e o diagnóstico técnico como identificadores dos problemas), como também para procurar politizar o plano diretor – agora claramente transformado num projeto de lei. Nesse sentido, tentaram nele introduzir temas da reforma urbana e dispositivos que atendiam a princípios de justiça social no âmbito urbano e que não eram impedidos Constituição, como, por exemplo, o Coeficiente de Aproveitamento Único e igual a um para toda a cidade. Associadas a esse dispositivo estavam as idéias da “concessão onerosa do potencial construtivo” e da criação do Fundo Municipal de Urbanização. Outros dispositivos inovadores eram a regularização fundiária e urbanização de favelas e as Zonas Especiais de Interesse Social-Zeis. Entretanto, um poderoso instrumento de reforma urbana, o IPTU progressivo no tempo, estava na dependência de lei federal, conforme disposto no artigo 182 da Constituição Federal.

Alguns planos diretores elaborados nos primeiros anos desta década foram obrigados a se curvar às pressões acima esboçadas, às vezes em processos de negociação, fazendo concessões em troca de tentativas (em geral frustradas) de avanços progressistas. Tanto em São Paulo como no Rio (Cavalieri, 1994, p. 395), o plano auto-aplicável foi combatido e o plano de diretrizes gerais (aquele talhado para ir para as prateleiras) foi defendido pelo empresariado.

A década de 90 pode ser considerada como marca do fim de um período na história do planejamento urbano brasileiro porque ela determina o início do seu processo de politização, fruto do avanço da consciência e organização populares. Essa politização ficou clara desde as metodologias de elaboração e dos conteúdos de alguns planos até os debates travados nos Legislativos e fora deles, em várias cidades importantes do País.

Quanto ao conteúdo, embora persista muito a tendência tradicional de colocar “tudo” no plano diretor (tendência que foi amplamente utilizada para obstruir seu andamento e tolher sua objetividade e eficácia), ficou claro o início da tendência oposta, ou seja, no sentido de destacar os aspectos que são da competência municipal, particularmente os atinentes à produção imobiliária – ou do espaço urbano. Com isso, teve início a rejeição não só do plano diretor pretensamente todo poderoso, como também sua suposta missão de “integração” ou “coordenação”, quer intersetorial, quer na esfera interna da Administração Municipal, quer entre distintos níveis de governo.

O plano diretor não é uma peça puramente científica e técnica, mas uma peça política, vinculada tão somente aos poderes e atribuições de um governo municipal. Seu poder político de “influenciar” outros níveis de governo é pequeno e será nulo se o próprio governo municipal não der credibilidade ao plano.

Alertas alarmistas sobre eventuais “desestabilizações” de economias urbanas causadas por planos diretores foram alguns dos fantasmas levantados por aqueles interesses para obstruir avanços na legislação urbanística

O plano diretor inovador dos anos 90 elegeu como objeto fundamental o espaço urbano, sua produção, reprodução e consumo, ou seja, um plano diretor eminentemente físico- territorial.

Essa posição “urbanística” nada tem de determinismo físico. Trata-se de adequar o plano diretor aos limites do Poder municipal e não tratá-lo como compêndio de análise científica do urbano, da urbanização contemporânea ou do desenvolvimento social e econômico regional

Para os movimentos populares, especialmente os ligados à terra e à habitação, o plano diretor tornou-se um instrumento desgastado em virtude das possibilidades que vinha apresentando de ser manipulado e desvirtuado pelos setores reacionários que dominam a produção do espaço urbano. Em conseqüência, a elaboração de vários planos diretores para importantes cidades do País, no início dos anos 90, não conseguiu mobilizar os movimentos populares urbanos.

O início da politização dos planos caracteriza-se pelo início dos debates e processos de negociação de natureza política entre interesses que claramente aparecem como conflitantes. O setor imobiliário, que tem crescido e se organizado tanto ultimamente, especialmente com o advento dos incorporadores, surge, na arena política, como a facção do capital mais diretamente interessada no espaço urbano e, por isso, liderando vários outros grupos empresariais, como os da construção civil e o comércio em geral e os grandes escritórios de engenharia e arquitetura. é certo que, na maioria das cidades importantes, as forças do atraso saíram vitoriosas.

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